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  • 21.3.05
    Ainda o atéu solidário (Uma resposta ao Timshel)

    Dizes que os meus argumentos derivam dum "positivismo mais ou menos explícito" e julgo que entendes sob isto o argumento racional e utilitarista, expressa na variante vulgar do o imperativo kantiano: "Faz ao outro o que queres que ele te faça!". Mas não me limitei a este argumento, disse: "Basta descobrir a minha semelhança com os outros homens e descobrir que nada distingue o meu desejo de felicidade do desejo deles. Posso ainda descobrir que me sentiria mais feliz se fosse rodeado de outras pessoas também felizes. E descobrir o prazer em partilhar e ver a felicidade na cara do outro." Não necessito de nenhuma entidade mediadora para deduzir desta experiência, que não é uma premissa lógica, mas uma experiência -, o genuino imperativo categórico de Kant, que não contém o argumento utilitarista:
    "Age de tal maneira que trates a humanidade da tua pessoa e dos outros como um fim, e não como um meio."

    Se te entendo bem, achas que não chega que alguém faça o bem. Tem de fazer o bem pelos motivos certos. Esta exigência pode ter uma razão política, e/ou uma razão moral/metafísica. Do ponto de vista político não aceito a exigência, porque simplesmente não compro, observando o mundo a minha volta, que a solidariedade humana que se baseia em motivos racionais/utilitaristas e no elementar sentimento humano, que me leva a identificar o outro como irmão, são menos fiáveis do que aqueles que decorrem duma doutrina religiosa.
    Resta o argumento moral e metafísico:
    Não te basta a acção, queres a intenção. Não te basta que uma pessoa faça o bem, queres que ela o faça porque o quer fazer pelas razões certas! Se for necessário, em sacrifício. Talvez mesmo em sacrifício, não se for necessário? Em qualquer caso, para cumprir as ordens de Deus!

    Exigir mais do que actos, exigir intenções é uma violação da liberdade mais intima que uma pessoa tem, que é a liberdade da vontade.
    Essa exigência está na linha da argumentação de Loyola na sua famosa carta sobre a obediência, mas também - hesitei muito se devia mencionar este exemplo - na exigência dos acusadores nos processos espectáculo estalinistas dos anos 30, aos que não bastava que os dissidentes confessassem os seus supostos crimes, mas que exigiam que estes ainda acabassem por querer os seus castigos! Claro que sei que estás no extremo oposto da desumanidade desta gente, e espero que me perdoes que os uso em argumento contra as tuas posições, mas o exemplo não me ocorreu por acaso, porque acredito mesmo que até esses crimes e a sua justificação tiveram uma componente religiosa, uma componente espiritual: O desejo da aniquilação da vontade!
    Mas podemos deixar a Tcheka e ficar-nos pelo Inácio de Loyola e pelo Santo Ofício. A Igreja católica fez, nos últimos tempos, muitas mea-culpa, pediu perdão, e admitiu excessos na sua história, como em relação a inquisição. Mas onde é que está a discussão e revisão crítica das teorias e dos actos de Inácio de Loyola e Bernard Clairvaux, os grandes ideólogos do totalitarismo?
    Tenho uma resposta para mim: Não é só oportunismo, o não querer expôr a Igreja às convulsões duma autocrítica tão radical. Não é só o poder das respectivas ordens que isto impede.
    Tenho para mim que a razão é mesmo teológica: Inácio e Bernard, de certo modo, dum modo muito essencialmente religioso, têm razão! Uma religião que não visa a total aniquilação da vontade do indivíduo, a total submissão do ego dos seus crentes, perde a sua alma, a sua razão de ser. (Ainda vou escrever um dia um post sobre o sacrifício de Abraão que contêm essa mesma lição). Acho que a religião tem que ser radical. Que a sua exigência sobre o homem é total. Se não a é, não é religião, é convenção, algo flácido, hipócrito e desprezível.
    Mas como a história nos mostra que os projectos da aniquilação da vontade, no plano político, sempre e com impressionante eficácia levam ao inferno, por isso mesmo temo e rejeito todas as instituições religiosas, porque ameaçam, e tanto mais quanto mais vigorosas são, estrangular a liberdade com a sua natureza intrinsecamente totalitária.
    Igrejas só são aturáveis para uma sociedade livre, se não têm poder e não têm um projecto de poder. Ou se já são pouco mais do que convenção.

    P.S.:
    Recomendo mesmo a leitura da carta de Inácio de Loyola.

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